domingo, 28 de setembro de 2008

enquanto você dormia













- Passei suas roupas todas antes de você acordar.
- (não responde)
- Todo dia eu passo minha vida a limpo, no ferro de passar.
- (não responde)
- Eu sei. A maior parte da vida nem está amassada.

Corte cinematográfico.
Tudo girando, como num parque de diversões, acelerando, acelerando, mais rápido, vocês no parque de diversão, barulho ao longe, talvez de crianças num chapéu mexicano ou montanha russa. Cartão postal, férias com a família, cachorro-quente e pipoca, cheiros e cores, tudo meio confuso como num flash – um flash é uma boa imagem – é isto – um flash – disso tudo – bem rápido acelerando e então suspende – Brusco.

Uma Pausa.
Longa.

Detalhe da mão segurando o bastão de algodão doce. Silêncio como num filme antigo. Eisenstein. Detalhe da outra mão segurando o balão de gás – não, não o balão – a cordinha do balão – a cordinha na mão, esticada pra cima, dando a entender que sustenta um balão de gás. Silêncio.

Corte.
Corte cinematográfico e uma mão alisa o seu cabelo. Uma mão macia. Música. Um cafuné com trilha sonora, um cafuné – uma seqüência inteira de cafuné, meio em câmera lenta, quase uma coreografia – sim, na verdade quase um balé-cafuné, e a trilha sonora vai crescendo, mãos e cabelos.

Corte.
De novo o detalhe do algodão doce, outra vez a cordinha do balão de gás. Nenhuma música aqui. Ruídos do ambiente, mas bem fraquinhos. Olhar pra dentro. Sangue correndo nas veias, alimentando e irrigando órgãos internos e o som ambiente baixinho. Um pulmão em plena atividade e ao longe a voz da tia do cachorro quente e os gritinhos vindos do chapéu mexicano.

Ou montanha russa.

Ou não.
Nenhuma imagem interna, apenas o blecaute e os sons.

Corte.
Agora parece uma cena de diálogo da qual foi tirado o áudio. Não se ouve o que uma diz. A outra fica calada e parece entender. Nesta seqüência não há música, nem balão de gás, nem chapéu mexicano, nem cachorro quente.


Nota para a iluminação: todas as cenas externas são claras. As internas são escuras.

sábado, 27 de setembro de 2008

não, não são as mesmas...

As ruas de Bagdá não são as mesmas, hoje enquanto dormia coloquei aquele velho tênis azul de corrida e corri muito por todas as ruas próximas, corri por outras distantes também. E volto a falar, a ruas de Bagdá não são as mesmas, hoje enquanto dormia corri na padaria para te trazer pão quente, corri porque o pão não podia chegar frio em casa, senão melhor não trazê-lo.
Corri enquanto dormia porque pensei em tudo o que deveria dizer, mas tudo passava tão rápido por mim que cheguei em casa e não lembrava de uma palavra sequer.
Dormia enquanto corri sem rumo. As ruas de Bagdá não são as mesmas, tudo parece que está prestes a explodir, e não se preocupe, saio correndo antes para ver se há perigo. Do meu lado explodiu uma criança hoje, podia ter sido você, mas você ainda esta em casa esperando que eu chegue com a vela, já disse que o pavio queimou, essa brasa não será o suficiente pra enxergar tudo o que eu quero ver.
Hoje explodiu o portão da nossa casa, ainda quer ficar, ainda vai fingir que nada acontece?
Você diz que olha por onde anda... mas já viu o portão da nossa casa? Não me venha com a desculpa da luz novamente, eu consigo ver.. você vai querer olhar?
Você já sabe o que fazer, passou todas as minhas roupas enquanto eu dormia.

mãos cegas

A falta de luz me faz mapear seu corpo com as mãos, essas mãos que olham mais do que seus olhos grandes em cima de mim. Busquei te tocar cada vez mais e... e como plugamos os fios nos lugares certos... Agora não há lugar para mais fios, mais tomadas, mais resoluções. Tudo virou uma cama de gato. Minhas mãos calejaram, sinto dor de te tocar, não te vejo mais. Corro então...não era aqui que deveríamos estar. Você pra cá e eu pra lá de Bagdá, sabendo que o tempo escasso que temos é contado por uma máquina, não é para sentirmos nada, você com tantos olhos e eu cega... fique com meus olhos, se quiser fique com minhas mãos também, assim que terminarmos farei um transplante de córneas.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

a arte subverte a linguagem porque antecipa o próximo sistema de linguagem

Nós vivemos em um mundo em que tudo é puro discurso. A realidade não é objeto, e sim o objeto representado. Eu represento qualquer coisa através do discurso bem elaborado. E isso implica na fragilidade da verdade. Porque as coisas são voláteis, são instáveis.

O real é aquilo que escapa à linguagem.

A imagem que nós temos de nós mesmos é algo construído. Não nos enxergamos. Só podemos ver o outro. A nossa auto-imagem é mediada pelo espelho.

Só é possível haver comunicação quando emissor e receptor interpretam signos dentro de um mesmo código. A língua, por exemplo, é um código. Pois código é um conjunto organizado - sistema - de sons, imagens, signos. Mas se o código é social e histórico raramente partilhamos do mesmo. Isso gera o ruído.


"A palavra é a morte da coisa", Foucault

"A linguagem é fonte de mal-entendidos." Pequeno Príncipe

"Todo texto carrega uma contradição", Bahktin

"O herói virou um homem fragmentado", McLuhan

"O HERÓI VIROU UM HOMEM FRAGMENTADO"

Eu sei que tudo isso começou assim porque eu te causei uma espécie de fascínio imagético. Porque eu te hipnotizei, como se hipnotiza uma serpente com o som da flauta. Eu te fascinei com a imagem que eu projetei pra você a partir do que eu sou, do que eu era. E você ficou paralisada. Presa. Mas esse tipo de fascínio passa. Você se libertou de mim. Você se libertou quando percebeu que a imagem não era a essência. E eu sei que essa mala embaixo da cama está aí há muito mais tempo de forma não-concreta. A idéia da mala está aí desde que a imagem se dissolveu. E isso já faz muito tempo. Muito mais tempo do que o dia em que você tirou todas as roupas do armário, colocou-as na mala e escondeu tudo debaixo da cama. Concretamente isso aconteceu apenas na semana passada. Mas nós sabemos que essa mala está aí há vários meses.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Cai a luz

- Minhas mãos estão ardendo.
- Venha deitar. Você teceu demais ontem.
- Não posso. É hora de começar. E agora que sei... simplesmente não posso.
- Eu me preocupo.
- É meu dever. Não posso deixar que você me impeça.
- Claro... (pausa) Você deve compreender meu amor. É um caso de sobrevivência.
- Se você construisse sua própria teia...
- Você sabe meu amor. Não é da minha natureza. Além do que mais, eu não quero trocar minha vida pela sua.
- Desculpe. Apenas não é uma questão de escolha. Eu preciso fazê-lo.
- Bom, eu ainda posso tentar... nos salvar na luz.
- Por que você está fazendo isso? Você sabe. Eu trabalho o dia todo. Você tem apenas duas horas. Pra que adiar?
- Eu não sei exatamente. (pausa) Talvez seja por quantas mais 22 horas eu estiver com você. Talvez eu seja um mártir. Talvez goste de desafios. Ou tenha orgulho de ser uma presa grande; frutífera e protéica. Talvez tenha nojo de tudo isso e seja doente. Eu não sei. Apenas preciso fazê-lo. (pausa). Venha, me abrace. Ah, não chore, meu amor. Shiii... Eu ainda estou aqui. Temos 22 horas agora.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Ver

Ver.
Hoje não vejo nada e acho que isso é visível.
Algo me tapa a visão.
Não, não é um tapa olho.
Meus sentidos estão comprometidos.
Já não ouço direito, o paladar não é um espetáculo, os outros eu não lembro. Só que são 5 .
Não, eu não sou o menininho do filme. Porque todo mundo morre e pronto.
As lacunas existem. Depois é só organizar tudo isso como quiser.
Eu te vi Dona aranha e vc tinha as 8 patas.
Distúrbios: Psicológicos, Digestivos, Visionários: Não vejo o que vem pela frente.
Eu odeio quando a luz pisca. Mas é preciso preencher as lacunas.
Monto a minha própria TV. Ela não é automática, nem digital. É visual. É preciso muita força pra ela continuar existindo. Vc fez um programa. Vc não era a baba do Caco. Mas só tinha pernas. E isso bastava.
Cada vez menor, e menor, e menor.

- Eu tô virando criança.

- Não, é só o filme acabando.

- Mas ainda quero dançar.

- Então eu filmarei. Pra ficar pra posteridade. Porque depois tudo acaba e pronto.